5.9.14

Capítulo Vinte






– TEM CERTEZA de que estou bem? – perguntou Demi, puxando a saia outra vez. – Acha que está curta demais para o sarau da faculdade?
Miley suspirou, porém recuou e ofereceu uma olhadinha de cima a baixo à amiga. Desde seu cabelo com caimento suave, arrumado para trás com uma faixa de couro preta acolchoada, passando pela blusa de seda azul-real abotoada até o pescoço, à saia preta de linho que batia exatamente três centímetros acima dos joelhos trêmulos. Quando os olhos de Miley chegaram aos pés de Demi, calçados com sapatos boneca de couro preto, ela suspirou.
– Você está ótima e esses sapatos são demais.
Demi olhou para baixo e sorriu. Tinha descoberto, para a própria surpresa, que amava sapatos. As roupas chiques, maquiagem e acessórios eram normais. Ela já havia se acostumado a eles e passara a gostar de seu efeito. Mas os sapatos ela realmente passou a comprar por prazer. Para si, pelo único motivo de terem o poder de fazê-la sorrir.
Então ela franziu a testa.
– Tem certeza? Quero dizer, este visual diz “professora séria”? Ou diz “idiota toda arrumada”?
Miley revirou os olhos e agarrou o braço de Demi.
– Já chega. Vamos. Você quer aquele cargo e vai chegar lá e convencer a banca de que é capaz de atrair atenção do jeito que eles desejam.
Demi suspirou profundamente, então, com o queixo empinado, adentrou o salão. Foi como entrar em um mundo diferente. Um que, ela percebeu de repente, não tinha deixado saudade. Os painéis de madeira eram de cerejeira, o piso, de mármore, a atmosfera, rarefeita e nobre. Em outros momentos teria sido um refúgio. Agora era como um dos velhos terninhos marrons dela, desajeitado, desconfortável e não muito atraente. Ela devia estar tensa, é claro. Aquela era sua vida e, assim que retornasse para ela, voltaria a se encaixar.
Tinha esperanças disso. A quantidade de olhares chocados para ela não foi muito reconfortante.
– Estou tão diferente assim? – perguntou ela a Miley discretamente.
– Você está ótima. Definitivamente nada invisível. Mantenha o foco.
Foco. Certo. Ela estava lá para impressionar, para provar seu valor aos colegas e à banca.
Com aquilo em mente, Demi pôs um sorriso confiante no rosto e caminhou pelo cômodo. Era algo que ela havia feito centenas de vezes antes, mas nunca daquele jeito. As pessoas queriam conversar com ela. Vinham para fazer perguntas, elogiar seu novo visual. Ela era, Demi percebeu depois de uma hora tentando chegar à tigela de ponche, a atração de festa.
– Sua proposta é intrigante – disse a professora Mohs, depois que ela encurralou Demi em um canto. Elas haviam passado os cinco primeiros minutos falando sobre os sapatos de Demi e os cinco minutos seguintes falando sobre suas ideias para o Departamento de Literatura. A mulher era uma socióloga brilhante e tinha o jeitinho de uma tia querida. Os cachos negros criavam um halo delicado em torno de seu rosto Angelical enquanto ela sorria beatificamente.
– É exatamente disso que o departamento precisa, se quer saber. Com isso e suas qualificações, eu diria que você teria chances excelentes perante o comitê.
Tudo que Demi pôde fazer foi se conter para não se abaixar e abraçar a mulher. Como um dos membros do comitê, a opinião dela era fundamental.
Cinco minutos depois, as mulheres se separaram. Demi encontrou Miley perto do bufê e ofereceu um sorriso satisfeito.
– Estou rouca – admitiu Demi. – Acho que falei mais nessa última hora do que falo em um dia inteiro de aula.
– É um tipo diferente de performance – declarou Miley, enfiando um cogumelo recheado na boca. – Você fica mais confortável na sala. Agora, está em exibição.
– Conforme eu esperava, todo mundo está perguntando o que eu fiz. Eu só disse que passei por uma pequena transformação, sem entrar em detalhes. – Demi encheu seu prato de aperitivos, então felizmente pegou um copo de ponche servido por um aluno. Ela e Miley seguiram para uma mesa desocupada e afundaram em suas cadeiras.
– Não tenho certeza sobre como responder ao “o que tenho feito”, no entanto. Aparentemente todos pensam que dar aulas pela internet quase não pode ser classificado como trabalho.
– Você disse a mesma coisa a respeito – apontou Miley.
– Porque isso quase não pode mesmo ser classificado como trabalho. Quero dizer, a interação é muito menor. Eu me sinto inútil. Um programa de computador poderia atribuir o material a ser lido e as notas dos trabalhos. – Ela se remexeu no assento, puxando a barra da saia para cobrir um centímetro extra de pele nua. – Graças a você e a essa transformação, porém, existe pouquíssima possibilidade de isso se tornar uma coisa permanente.
– Precisamos sair para comemorar – concluiu Miley, com a boca cheia de queijo brie. – E, ei, agora que impressionou a banca, há um homem que você realmente precisa impressionar.
Demi não precisou se virar para ver quem era. Ela percebeu, pelos cochichos que tomaram conta do ambiente. Sempre que seu pai entrava, as pessoas ficavam caladas. Quase desconfortáveis. Ou talvez ela fosse a única desconcertada, o que era uma pena, considerando todo o panorama da coisa.
Contudo, não mais. Ou, pelo menos, foi isso que ela disse a si. E, tal como a transformação, se ela fingisse externamente, talvez começasse a sentir aquilo internamente.
Então ela respirou fundo, empinou o queixo e se virou para examinar o salão. O pai estava parado, cumprimentando as pessoas lá do outro lado.
– Vá – incentivou Miley, como se lendo a mente de Demi.
– Tudo bem. – Demi inspirou outra vez e ficou de pé, cruzando o salão. A multidão se abria como o mar Vermelho para dar passagem ao reitor.
Quando Demi chegou até ele, que ainda estava conversando com o diretor do departamento de história, ele não pareceu notar que ela estava ali. A professora Hail notou, no entanto. Ela lançou um olhar de reconhecimento a Demi e tentou interromper a conversa com o reitor. Mas, absorto como sempre, ele continuava a falar. Sem parar. Demi percebeu pela primeira vez que a falta de sensibilidade de seu pai não se restringia a ela. Ele não prestava atenção às necessidade de ninguém.
Não era uma descoberta fortalecedora? Firmando-se nela, Demi sorriu para a professora Hail e pigarreou educadamente.
Nada.
Há alguns meses, o olhar de compaixão dessa mulher teria alimentado seu complexo de inferioridade. Agora não. Ela simplesmente revirou os olhos e, com um meneio de desculpas à professora, bateu no braço do pai.
– O q... – O reitor Lovato se virou, um franzir de testa vincando suas sobrancelhas ruivas. – Perdão?
– Pai, você tem um minuto?
– Com licença – disse a professora Hail, e saiu rapidamente.
– Demi? – Ele franziu a testa ainda mais quando absorveu a aparência dela. Pelo olhar de desaprovação, ele não estava impressionado. Demi não se surpreendeu. – O que, diabos, você fez consigo? É por isso que não tenho visto você ultimamente?
Ela ficou surpresa por ele ao menos ter notado sua ausência.
– Você não tem me visto porque transferiu todo meu curso para aulas on-line, lembra-se? – perguntou ela.
– Certo. – O franzir do cenho diminuiu e ele pousou o olhar sobre o ombro esquerdo dela. Durante os cinco minutos seguintes, começou a discutir os resultados das aulas dela, as notas e a possibilidade de criar novos cursos.
Era isso? Mais nenhum comentário sobre a transformação? Nada?
Ela olhou para baixo para se certificar de que realmente estava vestindo sua roupa elegantemente ajustada em vez dos terninhos folgados de lã do passado. Sim, lá estavam seus saltos matadores.
– Espere – interrompeu ela.
– Perdão?
– Você está falando como se já estivesse determinado que minha carga horária permanecerá sendo on-line no próximo semestre. – Ele deu seu olhar característico “não me amole com detalhes”. – Você disse que seria uma experiência temporária – insistiu ela.
Pelo olhar das pessoas e o vincar do rosto do pai, Demi utilizara um volume mais alto do que pretendera. Após os resultados desastrosos de sua crise com o pai, ela sempre fora cuidadosa para ser a filha perfeita. Para moldar sua personalidade de acordo com as expectativas dele. Atitudes temperamentais o constrangiam e perda de controle era algo a ser evitado a qualquer custo. Ela foi tomada pela vergonha por ter atraído atenção para a discórdia entre eles. Mas então, para a própria surpresa, a raiva afastou a vergonha. Ele não teria como mandá-la para o internato desta vez.
– Você disse que precisava de alguém para trazer empolgação ao departamento – insistiu, sentindo-se como uma borboleta se libertando do casulo. Uma borboleta muito furiosa e extenuada. – Eu sou essa pessoa. Minha proposta é de vanguarda. É dinâmica, está à frente de seu tempo e iria revitalizar nosso Departamento de Literatura.
– Agora, Demi...
– Não. – Ela cerrou o maxilar, e pela primeira vez enfrentou de fato o pai. – Não, você não pode falar “agora, Demi” para mim desta vez. Eu já lhe disse, estou cansada de ser tratada como se fosse insignificante. Cansada de ser dispensada com um tapinha na cabeça e um pseudoelogio.
Anos de prática mantiveram sua voz em tom moderado; as palavras, agradáveis. Afinal, seu pai simplesmente desligava tudo que considerasse emocional. Ocorreu-lhe a ironia por aquela ter sido a origem das suas apostas com Joe, mas ela afastou o pensamento para analisá-lo em outra ocasião.
– Falei com a professora Mohs mais cedo. Ela acha que minha proposta é intrigante. E que é perfeita para os rumos que a banca tem vislumbrado.
Ela acha que posso fazer esse trabalho.
– Eu nunca disse que não a achava capaz de fazer o trabalho, Demi. Mas para conquistar a promoção será necessário mais do que a opinião de um membro da banca.
E ele obviamente achava que ela não seria capaz de consegui-las. Demi sabia que ele não iria se oferecer para dar referências. Mas, então, ela não tinha aceitado nada assim antes.
Incapaz de manter o tom contido que seu pai exigia, ela simplesmente assentiu e se retirou. Não porque não desejasse constrangê-lo, mas porque não queria constranger a si. Quase sem conseguir enxergar entre as lágrimas que lhe borravam a visão, Demi atravessou o salão.
Então os últimos quatro meses não tinham servido para nada? Mesmo com a transformação, ela ainda não era importante. O olhar de Demi pousou sobre o professor Belkin, que havia acabado de chegar. E, ao lado dele, estava a concorrente de Demi, a tal morena. Ela encarou os olhos do professor Belkin e viu o recado ali. A escolha estava feita e Demi não tinha chance.
Ela enfiava as unhas nas palmas enquanto tentava reprimir a raiva amarga que surgia dentro de si.
Não aguentava mais. Anos controlando seu temperamento foram jogados pela janela quando ela imaginou o prazer de chutar o joelho do diretor presunçoso do departamento com seu sapato de bico fino. Ou talvez mirar um pouco mais alto e desinchar o ego dele.
Pronta para explodir, Demi começou a cruzar o salão. Antes que pudesse dar mais de três passos, no entanto, alguém lhe deu um tapinha no braço.
Ela olhou então, vendo quem era, e abrandou sua fúria com muito esforço.
– Professor Ekco. – Ela saudou o ex-presidente da banca e membro mais recente do comitê de admissão.
– Professora Lovato – respondeu ele. – Gostaria de parabenizá-la por sua proposta inovadora.
Ahhhh. Demi lhe ofereceu um sorriso hesitante, as palavras dele mais eficientes para aplacar sua raiva do que todos os seus exercícios de respiração.
Eles passaram os minutos seguintes discutindo suas ideias, Demi ficando mais animada e empolgada conforme explicada as inúmeras opções para inserir mais obras de ficção contemporânea na faculdade.
Finalmente, o ex-presidente assentiu.
– Você está certa, professora Lovato. É uma proposta fabulosa. Uma que vai acrescentar muita coisa ao lado de outras que recebemos. Claro, o professor Belkin apoiou uma candidata diferente, mas tenho certeza de que você pode ver que ela tem uma bagagem imensa.
Demi cerrou os dentes para evitar rosnar de frustração.
– Porém... – Ele arqueou uma sobrancelha e chegou mais perto. Ela enrijeceu. O velho não iria passar uma cantada nela, iria? Ela ouvira histórias sobre tais acontecimentos, mas nunca em Rosewood. E nunca, nunca, com ela. – Bem, tenho um segredinho para contar.
Ela congelou.
– Sou um grande fã do Wake Up California – disse o velho, cochichando.
– O quê? Como? – Ele não dava aulas de manhã? E como estava conseguindo sintonizar uma emissora local de São Francisco ali?
– Minha filha grava para mim – comentou ele.
Os olhos dela se arregalaram. Ai, droga. Quem, diabos, fazia esse tipo de coisa? Ela nunca cogitara tal possibilidade. Tanto esforço para o plano funcionar. Ela nem mesmo se deu o trabalho de suspirar. Simplesmente esperou.
– Depois de descobrir que seu alter ego é uma crítica literária, fui correr atrás para ler seu trabalho. Impressionante. E, embora eu nem sempre concorde com seu ponto de vista, você o apresenta de maneira muito eficiente.
Demi teve vontade de perguntar se aquilo significava a diferença entre um 9 e um 10.
Porém, se manteve calada enquanto ele prosseguia:
– Agora, essa aposta com Joseph Jonas tem sido fascinante. Não apenas a base de sua argumentação, mas o fato de você ter tomado uma atitude tão arriscada. É disso – disse ele, com um breve meneio de cabeça – que precisamos no Departamento de Literatura. Alguém propenso a correr riscos, a assumir um currículo no qual acredita.
Demi ficou boquiaberta, porém nenhuma palavra saiu. Ela foi tomada de empolgação e não conseguiu esconder o sorriso de contentamento.
Interpretando a reação, ele balançou a cabeça rapidamente.
– Não, não – corrigiu. – Não vou apoiar sua candidatura, professora. Pelo menos não agora.
A empolgação murchou como um balão com vazamento.
– Não agora?
Ele mostrou um sorriso paternal, deu um tapinha no braço dela e disse:
– Vença aquela aposta contra Joseph Jonas e eu lhe darei meu apoio. Principalmente se você conseguir com que o sr. Jonas venha fazer uma palestra na faculdade. Isso definitivamente iria impressionar os alunos. – Ele assentiu de maneira decisiva. – Sim, tenho confiança de que a presença dele, junto à sua proposta e à sua reputação acadêmica, vão garantir o cargo a você.
Demi sorriu fracamente em agradecimento.
Que irônico. Ela, que era virtualmente invisível há alguns meses, poderia conseguir sua cobiçada promoção vencendo uma simples aposta de alto nível.
É claro que, para vencer, tudo que ela precisava fazer era acertar com suas resenhas, evitar que Joe a distraísse usando de seus poderes luxuriosos e tentar não ser magoada.
Ela poderia muito bem tentar convencer seu pai a participar de um baile de pai e filha com ela no Dia dos Namorados.

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Dois capítulos pra vocês hoje meninas s2 gostaram? Esse final de semana, como compensação por ter passado uns dias sem postar, vou postar dois capítulos por dia, ok? É isso, se cuidem meus amores. Beijos.

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