10.3.15

Capítulo Dezessete




Segunda-feira, 29 de outubro de 2012
09h50

Rolo para o lado, e Jonas está sentado ao meu lado na cama, encarando o celular. Ele volta a atenção para mim quando me espreguiço, abaixa-se para me beijar, mas eu movo a cabeça rapidamente.
— Hálito matinal — murmuro, saindo da cama.
Jonas ri e volta a prestar atenção no telefone. Vesti minha camisa durante a noite, mas nem lembro quando isso aconteceu. Eu a tiro e entro no banheiro para tomar banho. Após terminar, volto para o quarto e vejo que ele está guardando nossas coisas.
— O que está fazendo? — pergunto, observando-o dobrar minha camisa e colocá-la dentro da bolsa. Ele lança um breve olhar para mim e depois volta a se concentrar nas roupas espalhadas pela cama.
— Não podemos ficar aqui para sempre, Demi.
Precisamos resolver o que quer fazer.
Dou alguns passos em sua direção, o coração acelerando no peito.
— Mas... mas não sei ainda. Eu nem tenho um lugar para ir.
Ele percebe o pânico na minha voz, dá a volta na cama e põe os braços ao meu redor.
— Você tem a mim, Demi. Acalme-se. Podemos voltar para minha casa até decidirmos o que fazer. Além disso, ainda estamos no colégio. Não podemos simplesmente parar de frequentar as aulas e, com certeza, não podemos morar num hotel para sempre.
A ideia de voltar para aquele lugar, a apenas 3 quilômetros de Dianna, me deixa apreensiva. Tenho medo de que a proximidade me deixe com vontade de confrontá-la, e ainda não estou pronta para isso. Só quero mais um dia. Quero ver minha antiga casa uma última vez na esperança de que isso me faça recuperar mais lembranças. Não quero depender de Dianna para saber da verdade. Quero descobrir o máximo possível sozinha.
— Só mais um dia — peço. — Por favor, vamos ficar só mais um dia, depois a gente volta. Preciso tentar entender as coisas e, para isso, vou precisar ir até lá mais uma vez.
Jonas se separa de mim e fica me olhando, balançando a cabeça.
— De jeito nenhum — diz ele com firmeza. — Não vou fazê-la passar por isso de novo.
Ponho as mãos em suas bochechas para tranquilizá-lo.
— Eu preciso, Jonas. Juro que não vou sair do carro dessa vez. Juro. Mas preciso ver a casa mais uma vez antes de irmos embora. Eu me lembrei de tanta coisa enquanto estava lá. Só quero mais algumas lembranças antes de me levar de volta e eu decidir o que fazer.
Ele suspira e fica andando de um lado para o outro, sem querer concordar com minha súplica desesperada.
— Por favor — imploro, sabendo que ele não será capaz de dizer não se eu continuar insistindo. Ele vira-se para a cama lentamente, pega as bolsas que trouxemos e as joga no closet.
— Está bem. Eu disse que faria qualquer coisa que você achasse necessária. Mas não vou pendurar todas as roupas de novo — diz ele, apontando para as bolsas.
Eu rio e corro até ele, jogando os braços ao redor do seu pescoço.
— Você é o melhor namorado de todos e o mais compreensivo do mundo inteiro.
Ele suspira e retribui meu abraço.
— Não, não sou — diz ele, pressionando os lábios em minha têmpora. — Sou o namorado mais domesticado do mundo inteiro.

Segunda-feira, 29 de outubro de 2012
16h15

De todos os minutos do dia, claro que escolhemos os mesmos dez para ficarmos parados na frente da minha casa que meu pai escolhe para chegar de carro. Assim que ele estaciona na garagem, Jonas leva a mão à ignição.
Estendo a mão, trêmula, e a coloco em cima da dele.
— Não vá embora — digo. — Preciso ver como ele é.
Jonas suspira e força a cabeça no apoio, sabendo muito bem que devíamos ir embora, mas sabendo também que eu nunca o deixaria fazer isso.
Paro de encarar Jonas e olho para a viatura estacionada na frente da casa do outro lado da rua. A porta se abre, e um homem sai, de farda. Está de costas para nós, segurando um celular no ouvido. Está no meio de uma ligação, por isso para no jardim e continua conversando, sem entrar na casa. Vê-lo não causa a menor reação em mim. Não sinto absolutamente nada até o instante em que se vira, e vejo seu rosto.
— Ai, meu Deus — sussurro alto. Jonas olha para mim sem entender, e eu só consigo balançar a cabeça. — Não é nada — digo. — É que ele parece... familiar. Eu não tinha nenhuma imagem na cabeça, mas, se o visse na rua, o reconheceria.
Nós dois continuamos o observando. As mãos de Jonas seguram o volante, e os nós de seus dedos estão brancos. Olho para minhas próprias mãos e percebo que estou segurando o cinto de segurança da mesma maneira.
Meu pai acabou afastando o telefone da orelha e o guardando no bolso. Começa a vir na nossa direção, e as mãos de Jonas voltam imediatamente para a ignição. Solto o ar baixinho, esperando que ele não tenha percebido de alguma maneira que o estamos observando. Ao mesmo tempo notamos que ele está apenas indo até a caixa de correspondência no início do jardim e relaxamos na mesma hora.
— Já basta? — pergunta Jonas, rangendo os dentes. — Pois não consigo ficar aqui mais um segundo sequer sem sair desse carro e enchê-lo de porrada.
— Quase — respondo, sem querer que ele faça alguma idiotice, mas também não quero ir embora ainda. Fico observando meu pai conferir as cartas que recebeu enquanto volta para casa e, então, pela primeira vez, penso em uma coisa.
E se ele tiver se casado de novo?
E se tiver outros filhos?
E se estiver fazendo aquilo com outra pessoa?
Minhas palmas começam a suar no material escorregadio do cinto, então eu o solto e esfrego as mãos na calça. Elas começam a tremer ainda mais. De repente, só consigo pensar que ele não pode se safar. Não posso deixá-lo ir embora sabendo que pode estar fazendo isso com outra pessoa. Preciso saber. Preciso garantir que não é mais o monstro malvado das minhas lembranças, pois devo isso a mim mesma e a todas as outras crianças com quem ele mantém contato. Para ter certeza disso, sei que preciso vê-lo. Preciso falar com ele. Preciso saber por que fez tudo aquilo comigo.
Depois que meu pai destranca a porta da casa e entra, Jonas exala fundo.
— Agora? — diz ele, virando-se para mim.
Não tenho nenhuma dúvida de que ele se jogaria em cima de mim agora mesmo se soubesse o que estou prestes a fazer. Então não dou pista alguma, forço um sorriso e concordo com a cabeça.
— Sim, agora podemos ir.
Ele põe a mão na ignição. No mesmo instante em que gira o pulso, solto o cinto, escancaro a porta e saio correndo. Corro pela rua e atravesso o jardim do meu pai, chegando até o pórtico. Nem escuto Jonas vindo atrás de mim. Ele não faz o menor ruído enquanto põe os braços ao meu redor e me ergue, carregando-me e descendo os degraus. Ele ainda está me carregando, e eu o chuto, tentando tirar seus braços da minha barriga.
— O que diabos acha que está fazendo? — Ele não me põe no chão, simplesmente continua me segurando e me carregando pelo jardim.
— Me solte agora mesmo, Jonas, ou vou gritar! Juro por Deus que vou gritar!
Com a ameaça, ele me vira em sua direção e balança meus ombros, fulminando-me com um olhar bastante desapontado.
— Não faça isso, Demi. Não precisa lidar com isso de novo, não depois do que ele fez. Quero que dê mais tempo para si mesma.
Encaro-o com uma mágoa no coração que, com certeza, é capaz de ver em meus olhos.
— Preciso saber se ele está fazendo isso com alguma outra pessoa. Tenho de saber se tem outros filhos. Não posso deixar isso de lado sabendo do que ele é capaz. Preciso vê-lo. Preciso falar com ele. Para saber que não é mais aquele homem antes de voltar ao carro e ir embora.
Jonas balança a cabeça.
— Não faça isso. Ainda não. Podemos fazer algumas ligações. Vamos descobrir mais coisas sobre ele na internet primeiro. Por favor, Demi.
Jonas desliza as mãos dos meus ombros até meus braços e tenta me fazer ir até o carro. Hesito, ainda certa de que preciso ficar cara a cara com ele. Nada que eu possa descobrir na internet vai me dizer o que posso captar por sua voz ou olhar.
— Tem alguma coisa de errado acontecendo aqui?
Jonas e eu viramos as cabeças bruscamente na direção da voz. Meu pai surge na base dos degraus do pórtico. Está olhando para Jonas, que continua segurando meus braços com firmeza.
— Jovem, esse homem está machucando você?
Só o som de sua voz é o suficiente para fazer meus joelhos cederem. Jonas sente que estou ficando mais fraca e me puxa para perto do peito.
— Vamos embora — sussurra ele, pondo o braço ao meu redor e me conduzindo para a frente, de volta para o carro dele.
— Não se mexam!
Paro na mesma hora, mas Jonas continua tentando me empurrar para a frente com mais urgência.
— Virem-se! — Desta vez a voz de meu pai soa mais autoritária. Agora Jonas para junto comigo, pois sabemos as consequências de se ignorar as ordens de um policial.
— Tente disfarçar — diz Jonas no meu ouvido.
— Talvez ele não a reconheça.
Balanço a cabeça e inspiro fundo. Nós nos viramos bem devagar. Meu pai está a vários metros da casa, aproximando-se de nós. Está me olhando atentamente, vindo para perto de mim com a mão no coldre. Baixo os olhos para o chão, porque seu rosto está indicando um certo reconhecimento e isso me deixa apavorada. Ele para a vários metros de nós e hesita. Jonas me segura com mais força, e continuo olhando para o chão com tanto medo que nem consigo respirar.
— Princesa?

Segunda-feira, 29 de outubro de 2012
16h35

— Não se atreva a encostar nela, porra!
Jonas está gritando e fazendo pressão nos meus braços. A voz está bem perto, então sei que está me segurando. Solto as mãos nas laterais do corpo e sinto a grama entre os dedos.
— Linda, abra os olhos. Por favor. — A mão de Jonas está acariciando meu rosto. Lentamente, abro os olhos e ergo o olhar. Ele está olhando para mim, com meu pai em pé bem ao seu lado. — Está tudo bem, você acabou de desmaiar. Preciso que se levante. Temos de ir embora.
Ele me ajuda a me levantar e não tira o braço da minha cintura, praticamente segurando todo o meu peso.
Agora meu pai está bem na minha frente, me encarando.
— É mesmo você — diz ele, olhando para Jonas e depois para mim. — Hope? Se lembra de mim? — Seus olhos estão cheios d’água.
Os meus não.
— Vamos — diz Jonas mais uma vez.
Eu resisto à sua força e me solto. Olho para meu pai... um homem que agora está demonstrando emoções como se tivesse me amado um dia. Deixe de mentira, porra.
— Você se lembra? — repete ele, dando mais um passo para perto de mim. Jonas me puxa um pouco para trás a cada passo que meu pai dá. — Hope, você se lembra de mim?
— Como eu poderia esquecer?
A ironia é que eu o esqueci sim. Completamente. Esqueci de tudo sobre ele, das coisas que fez comigo e da vida que tive aqui. Mas não quero que saiba disso. Quero que saiba que eu me lembro dele e de todas as coisas que fez comigo.
— É você — diz ele, mexendo a mão nervosamente ao lado do corpo. — Você está viva. Você está bem.
Ele pega o rádio, para relatar o caso, presumo. Mas antes que seu dedo pressione o botão, Jonas estende o braço e derruba o rádio da mão dele. O aparelho cai no chão, meu pai se abaixa, o pega e dá um passo defensivo para trás, apoiando a mão no coldre mais uma vez.
— Se fosse você, não avisaria a ninguém que ela está aqui — diz Jonas. — Duvido que queira ver o fato de que não passa de um pervertido filho da puta estampado nas primeiras páginas dos jornais.
Meu pai fica completamente pálido de repente e olha para mim com medo nos olhos.
— O quê? — Ele olha para mim sem acreditar. — Hope, quem quer que tenha levado você... essa pessoa mentiu. Disse coisas sobre mim que não eram verdade. — Agora ele está mais perto, os olhos desesperados e suplicantes. — Quem foi que a levou, Hope? Quem foi?
Dou um passo confiante em sua direção.
— Eu me lembro de tudo o que você fez comigo. E, se me der o que quero, juro que vou embora e nunca mais vai ouvir falar de mim.
Ele continua balançando a cabeça, sem acreditar que a própria filha está bem diante dele. Tenho certeza de que também está tentando processar que agora sua vida está correndo risco. A carreira, a reputação, a liberdade. Como se fosse possível, seu rosto fica ainda mais pálido no instante em que percebe que não é possível continuar negando. Ele sabe que eu sei.
— O que você quer?
Olho para a casa e depois para ele mais uma vez.
— Respostas — digo. — E quero tudo que ainda tem de minha mãe.
Jonas está segurando firme minha cintura mais uma vez. Estendo o braço e seguro sua mão, precisando me assegurar de que não estou sozinha nesse momento. Minha confiança se esvaece depressa a cada minuto que passo na presença do meu pai. Tudo a respeito dele — a voz, as expressões faciais, os movimentos — faz meu estômago doer.
Meu pai lança um breve olhar para Jonas e se vira outra vez para mim.
— Podemos conversar lá dentro — afirma ele baixinho, olhando rapidamente para as casas ao redor. O fato de estar demonstrando nervosismo só prova que analisou suas opções e percebeu que não tem muita escolha. Ele inclina a cabeça para a porta e começa a subir os degraus.
— Deixe a arma — diz Jonas.
Meu pai para, mas não se vira. Devagar, põe a mão ao lado do corpo e retira a arma do coldre. Ele a coloca nos degraus do pórtico e começa a subi-los.
— As duas — exige Jonas.
Meu pai para novamente antes de chegar à porta. Ele se curva até o tornozelo, levanta a perna da calça e pega a outra arma. Depois que as duas estão fora do seu alcance, entra em casa e deixa a porta aberta para nós. Antes de eu entrar, Jonas me vira para si.
— Vou ficar bem aqui, com a porta aberta. Não confio nele. Só vá até a sala.
Balanço a cabeça e lhe dou um beijo rápido e forte antes que ele me solte. Entro na sala, e meu pai está sentado no sofá, as mãos na frente do corpo. Está encarando o chão. Vou até o sofá mais próximo e me sento na beirada, me recusando a relaxar. Estar dentro dessa casa, na presença dele, deixa minha mente confusa e meu peito apertado. Respiro fundo várias vezes, tentando acalmar o medo.
Uso o momento de silêncio entre nós para encontrar algo em suas feições que pareça com as minhas. A cor do cabelo, talvez? Ele é bem mais alto que eu, e, quando ele consegue olhar para mim, vejo que seus olhos são verde-escuros, diferente dos meus. Tirando a cor caramelo do cabelo, não me pareço em nada com ele. Sorrio com essa constatação.
Meu pai ergue os olhos até os meus e suspira, mudando de posição, constrangido.
— Antes que diga qualquer coisa — começa ele —, precisa saber que eu a amava e que me arrependo do que fiz cada segundo da minha vida.
Não respondo verbalmente ao que ele diz, mas preciso me conter para não reagir fisicamente a tanta merda. Ele poderia passar o resto da vida pedindo desculpas, mas nunca será o suficiente para apagar nenhuma das noites em que a maçaneta girou.
— Quero saber por que fez aquilo — digo com a voz trêmula. Odeio estar soando tão ridiculamente fraca. Pareço mais a garotinha que implorava para ele parar. Não sou mais aquela garotinha e não quero de jeito algum parecer fraca na frente dele.
Ele se encosta no assento e esfrega as mãos nos olhos.
— Não sei — diz ele, irritado. — Depois que sua mãe morreu, voltei a beber muito. Só foi acontecer um ano depois, quando bebi demais numa noite e acordei no dia seguinte sabendo que tinha feito algo terrível. Estava esperando que tivesse sido apenas um sonho horroroso, mas, quando fui acordá-la naquela manhã, você estava... diferente. Não era mais a garotinha feliz de antes. Da noite para o dia, se tornou alguém que morria de medo de mim. Passei a me odiar. Nem sabia ao certo o que tinha feito, pois estava bêbado demais para lembrar. Mas sabia que tinha sido algo horrendo e peço mil desculpas. Isso nunca se repetiu e fiz de tudo para compensar. Passei a comprar presentes o tempo inteiro e dava tudo o que você desejava. Não queria que se lembrasse daquela noite.
Seguro meus joelhos numa tentativa de não pular até o outro lado da sala e estrangulá-lo. O fato de estar tentando fingir que só aconteceu uma vez me faz odiá-lo mais que antes, se é que isso é possível. Está tratando aquilo como se tivesse sido um acidente. Como se tivesse quebrado uma caneca ou arranhado a porra do carro.
— Era noite... após noite... após noite — digo. Estou tendo de juntar todo o controle que tenho para não gritar do fundo do peito. — Eu tinha medo de me deitar, medo de acordar, medo de ir tomar banho e medo de falar com você. Eu não era uma garotinha com medo de monstros dentro do armário ou debaixo da cama. Morria de medo do monstro que devia me amar! Enquanto você devia estar me protegendo de pessoas como você!
Agora Jonas está do meu lado, segurando meu braço enquanto grito com o homem do outro lado da sala. Todo o meu corpo está tremendo, e eu me inclino para perto de Jonas, pois preciso sentir sua calma. Ele massageia meu braço e beija meu ombro, me deixando colocar para fora as coisas que preciso dizer, sem tentar me impedir nenhuma vez.
Meu pai afunda mais no sofá, e lágrimas começam a escorrer-lhe dos olhos. Ele não se defende, pois sabe que tenho razão. Não tem absolutamente nada para me dizer. Só é capaz de cobrir o rosto com as mãos e chorar, lamentando por estar, enfim, sendo confrontado, mas sem se lamentar de nada do que fez.
— Você tem outros filhos? — pergunto, fulminando aqueles olhos tão envergonhados que nem conseguem se virar para mim. Ele abaixa a cabeça e pressiona a mão na testa, mas não me responde. — Tem? — grito. Preciso saber se não fez isso com mais ninguém. Se ele não continua fazendo isso.
Ele balança a cabeça.
— Não. Não me casei de novo. — Sua voz parece devastada, e, pelo jeito, ele também está se sentindo assim.
— Só fez aquilo comigo?
Ele mantém os olhos fixos no chão, evitando minhas perguntas com pausas longas.
— Você me deve a verdade — digo com calma. — Fez aquilo com alguém antes de mim?
Percebo-o ficar inexpressivo. A insensibilidade em seus olhos deixa claro que não tem nenhuma intenção de revelar mais nada. Apoio a cabeça nas mãos, sem saber o que fazer em seguida. Parece tão errado ir embora e deixá-lo viver sua vida, mas também tenho muito medo do que pode acontecer se eu o denunciar. Tenho medo do quanto minha vida pode mudar, de que ninguém acredite em mim, pois já faz tantos anos. No entanto, o que me deixa mais apavorada é o medo de que eu o ame demais para querer arruinar o resto da sua vida. Estar com ele não me faz lembrar apenas de todas as coisas terríveis que fez comigo, mas também do pai que era, fora tudo isso. Ficar dentro dessa casa está fazendo um furacão de emoções rodopiar dentro de mim. Olho para a mesa da cozinha e começo a me lembrar das coisas boas, de conversas que tivemos sentados ali. Vejo a porta dos fundos e me lembro de correr até lá fora para ver o trem passar no campo atrás da nossa casa. Tudo ao meu redor está me enchendo de memórias conflitantes, e não gosto de amá-lo tanto quanto o odeio.
Enxugo as lágrimas dos olhos e fixo o olhar nele mais uma vez, que está encarando o chão silenciosamente. E, por mais que não queira, começo a enxergar vislumbres do meu papai. Vejo o homem que me amava da maneira como me amava... bem antes de eu começar a ter medo da maçaneta girar.

Catorze anos antes

— Shh — diz ela, pondo o cabelo atrás das minhas orelhas.
Nós duas estamos deitadas na cama, e ela está atrás de mim, me aconchegando em seu peito. Passei a noite inteira acordada por estar doente. Não gosto de ficar doente, mas adoro como minha mamãe toma conta de mim quando fico assim.
Fecho os olhos e tento dormir para me sentir melhor. Estou quase pegando no sono quando escuto a maçaneta virar, então abro os olhos. Meu papai entra e sorri para mamãe e para mim. No entanto, seu sorriso some ao me ver, pois ele percebe que não estou me sentindo bem. Meu papai não gosta quando fico doente porque ele me ama, então fica triste.
Ele se senta nos joelhos ao meu lado e toca meu rosto.
— Como está minha garotinha? — pergunta ele.
— Não me sinto bem, papai — sussurro. Ele franze a testa quando digo isso. Devia ter dito que me sentia bem para ele não franzir a testa.
Ele olha para minha mamãe, deitada atrás de mim, e sorri para ela. Ele toca o rosto dela da mesma forma como tocou o meu.
— Como está minha outra garota?
Sinto ela tocando a mão dele enquanto fala com ela.
— Cansada — diz ela. — Passei a noite acordada com ela.
Ele se levanta e puxa sua mão até ela também se levantar. Fico observando-o pôr os braços ao redor dela e abraçá-la, e depois a beija na bochecha.
— Eu assumo a partir de agora — diz ele, passando a mão no cabelo dela. — Vá descansar um pouco, está bem?
Minha mamãe concorda com a cabeça, dá outro beijo nele e sai do quarto. Meu papai dá a volta na cama e deita na mesma posição em que mamãe estava. Põe os braços ao meu redor assim como ela e começa a cantar sua música preferida. Ele diz que é sua música preferida porque é sobre mim.
“Já perdi muito na minha longa vida.
Sim, já vi sofrimento e já vi conflitos.
Mas nunca vou desistir; nunca vou me entregar. Porque sempre terei meu raio de esperança”.
Sorrio, apesar de não estar me sentindo bem. Meu papai continua cantando para mim até eu fechar os olhos e pegar no sono.

Segunda-feira, 29 de outubro de 2012
16h57

É a primeira lembrança que tenho de antes de todas as coisas ruins começarem. Minha única lembrança de antes de minha mãe morrer. Mas não consigo me lembrar da aparência dela porque a lembrança era mais um borrão, mas me lembro do que senti. Eu os amava. Os dois.
Meu pai ergue o olhar para mim agora com o rosto tomado pelo sofrimento. Não sinto a mínima pena dele agora porque... quando foi que ele sentiu pena de mim? Sei que está numa posição vulnerável, e, se eu puder usar isso para conseguir arrancar mais coisa dele, então é o que vou fazer.
Eu me levanto, e Jonas tenta segurar meu braço, então olho para ele e balanço a cabeça.
— Está tudo bem — asseguro-lhe.
Ele balança a cabeça e me solta relutantemente, deixando que me aproxime do meu pai. Quando chego perto dele, me ajoelho e olho em seus olhos cheios de arrependimento. Ficar tão próxima dele está fazendo meu corpo se retesar e a raiva se acumular dentro do meu coração, mas sei que preciso fazer isso para ele me dar as respostas de que preciso. Ele tem de acreditar que estou me compadecendo.
— Eu estava doente — digo, com calma. — Minha mãe e eu... nós estávamos na cama, e você chegou do trabalho. Ela havia passado a noite toda acordada comigo e estava cansada, então você disse que ela podia ir descansar.
Uma lágrima escorre pela bochecha do meu pai, e ele faz que sim com a cabeça sutilmente.
— Você ficou me abraçando naquela noite como um pai deve abraçar a filha. E cantou para mim. Lembro que costumava cantar uma música para mim sobre seu raio de esperança. — Enxugo as lágrimas dos meus olhos e continuo olhando para ele. — Antes de minha mãe morrer... antes de você ter de enfrentar todo aquele sofrimento... nem sempre fez aquelas coisas comigo, não é?
Ele balança a cabeça e toca meu rosto.
— Não, Hope. Eu amava tanto você. Ainda amo. Amava você e sua mãe mais que minha própria vida, mas quando ela morreu... o melhor de mim morreu com ela.
Cerro os punhos, recuando de leve ao sentir as pontas dos seus dedos na minha bochecha. Mas consigo aguentar e, de alguma maneira, mantenho a calma.
— Lamento que tenha passado por isso — digo com firmeza. E lamento mesmo por ele. Eu me lembro do quanto amava minha mãe e, independentemente de como ele lidou com o luto, meu desejo é que nunca tivesse precisado lidar com a perda dela. — Sei que a amava. Eu me lembro. Mas saber disso não faz com que seja mais fácil perdoá-lo pelo que fez. Não sei por que o que tem dentro de você é tão diferente do que existe nas outras pessoas... a ponto de se permitir fazer aquelas coisas comigo. Mas, apesar disso, sei que me ama. E por mais que seja difícil admitir... eu também amava você. Amava todo o seu lado bom.
Eu me levanto e dou um passo para trás, ainda fitando seus olhos.
— Sei que não é totalmente mau. Eu sei disso. Mas se me ama como diz que ama... se realmente amava minha mãe... então vai fazer tudo que puder para me ajudar a superar isso. Você me deve isso. Tudo que quero é que seja sincero para que eu possa ir embora daqui com um pouco de paz. É só por isso que estou aqui, OK? Só quero paz.
Agora ele está aos prantos, balançando a cabeça que está coberta pelas mãos. Volto para o sofá, e Jonas me abraça forte, ainda ajoelhado ao meu lado. Os tremores continuam se espalhando pelo meu corpo, então coloco os braços ao redor de mim mesma. Jonas está sentindo como tudo isso está me afetando, então desliza os dedos por baixo do meu braço até encontrar meu dedo mindinho e enroscar o dele ao redor do meu. É um gesto bem pequeno, mas não podia ter decidido fazer nada mais perfeito para me encher com uma sensação de segurança, pois é exatamente disso que estou precisando.
Meu pai suspira fundo e abaixa as mãos.
— Quando comecei a beber... foi apenas uma vez. Fiz algo com minha irmã mais nova... mas foi só uma vez. — Ele fixa o olhar em mim, e seus olhos continuam cheios de vergonha. — Foi anos antes de eu conhecer sua mãe.
Sinto um aperto no coração com sua honestidade brutal, mas sinto um aperto ainda maior por ele achar que não tem problema já que foi somente uma vez. Engulo o nó da minha garganta e continuo com as perguntas.
— E depois de mim? Fez aquilo com alguém depois que fui levada?
Seus olhos se fixam no chão, e ver a culpa que ele está demonstrando é como levar um murro bem na barriga. Solto o ar, contendo as lágrimas.
— Quem? Quantas?
Ele balança a cabeça sutilmente.
— Foi só mais uma. Parei de beber há alguns anos e não encostei em ninguém depois disso. — Ele olha para mim, os olhos desesperados e esperançosos. — Juro. Só foram três e nos piores momentos da minha vida. Quando estou sóbrio, consigo controlar minhas vontades. Por isso não bebo mais.
— Quem era ela? — pergunto, querendo que lide com a verdade por mais alguns minutos antes que eu saia da sua vida para sempre.
Ele aponta a cabeça para a direita.
— Ela morava na casa aqui ao lado. Eles se mudaram quando ela estava com uns 10 anos, então nem sei o que aconteceu com a menina. Foi anos atrás, Hope. Não faço isso há anos, e essa é a verdade. Juro.
De repente meu coração passa a pesar uma tonelada. Não sinto mais o aperto no meu braço e vejo Jonas ficar devastado diante dos meus próprios olhos.
Seu rosto revela uma quantidade insuportável de sofrimento, e ele se vira de costas para mim, pondo as mãos no cabelo.
— Less — sussurra ele aflito. — Ah, meu Deus, não. — Ele pressiona a cabeça no batente, segurando firme a nuca com ambas as mãos.
Na mesma hora, me levanto, vou até ele e coloco as mãos em seus ombros, com medo de que ele vá explodir. Jonas começa a tremer e a chorar, sem fazer barulho algum. Não sei o que fazer nem o que dizer. Ele só fica repetindo “não” várias vezes seguidas, balançando a cabeça. Meu coração está sofrendo por ele, mas não faço ideia de como ajudá-lo. Entendo agora o que quis dizer quando comentou que só fala as coisas erradas para mim, pois agora não tem absolutamente nada que posso dizer para ajudá-lo. Em vez disso, pressiono a cabeça na dele. Jonas se vira e fica me balançando com o braço.
Pela maneira como seu peito está agitado, percebo que está tentando conter a raiva. Ele passa a inspirar e expirar com certa intensidade, tentando ficar mais calmo. Eu o seguro com mais força, na esperança de que ele consiga não liberar sua raiva. Por mais que eu queira que faça isso... por mais que eu queira que seja capaz de retaliar fisicamente o que meu pai fez com Less e comigo, temo que nesse momento Jonas esteja sentindo ódio demais e não consiga parar depois que começar.
Ele me solta e leva as mãos até meus ombros, afastando-me dele. A expressão em seus olhos é tão sombria que me sinto na defensiva de imediato. Dou um passo para ficar entre ele e meu pai, sem saber o que mais posso fazer para impedi-lo de atacar, mas é como se eu nem estivesse aqui. Quando Jonas olha para mim, é como se nem estivesse me vendo. Escuto meu pai se levantar atrás de mim e vejo os olhos de Jonas acompanhá-lo. Eu me viro, preparando-me para dizer ao meu pai que saia imediatamente da sala, mas Jonas segura meus braços e me empurra, me tirando do caminho.
Tropeço e caio no chão, vendo em câmera lenta meu pai alcançar algo atrás do sofá e se virar com uma arma na mão, apontando-a para Jonas. Não consigo falar. Não consigo gritar. Não consigo me mover. Não consigo nem fechar os olhos. Sou obrigada a ficar observando.
Meu pai leva o rádio até a boca, segurando com firmeza a arma, com uma expressão fria nos olhos. Ele pressiona o botão sem desviar os olhos de Jonas e fala:
— Policial caído em Oak Street trinta e cinco vinte e dois.
Meus olhos imediatamente se direcionam para Jonas e depois voltam para meu pai. O rádio cai das mãos dele e para no chão à minha frente. Eu me levanto, ainda sem conseguir gritar. Os olhos arrasados do meu pai encontram os meus enquanto ele vira a arma devagar.
— Me desculpe mesmo, Princesa.
O som explode, enchendo a sala inteira. É tão alto. Aperto os olhos e tapo os ouvidos, sem saber nem de onde o ruído vem. É um barulho agudo, como um grito. Parece uma garota berrando.
Sou eu.
Eu que estou berrando.
Abro os olhos e vejo o corpo sem vida do meu pai a alguns metros de mim. As mãos de Jonas tapam minha boca, ele me ergue e me leva para fora da casa. Ele nem está tentando me carregar. Meus calcanhares se arrastam pela grama, e ele tapa minha boca com uma das mãos e segura minha cintura com o outro braço. Ao chegarmos no carro, mantém a mão firme tapando minha boca, abafando meu grito. Ele olha ao redor freneticamente, para garantir que ninguém está testemunhando o caos se desenrolando. Meus olhos estão arregalados, e balanço a cabeça, esperando que o último minuto da minha vida simplesmente desapareça se eu me recusar a acreditar nele.
— Pare. Preciso que pare de gritar. Agora.
Balanço a cabeça com firmeza, conseguindo silenciar o som involuntário que estava saindo da minha boca. Tento respirar e consigo ouvir o ar entrando e saindo depressa pelo meu nariz. Meu peito está agitado e, quando vejo o sangue espalhado na lateral do rosto de Jonas, tento não gritar outra vez.
— Está escutando? — pergunta Jonas. — São sirenes, Demi. Eles vão chegar aqui em menos de um minuto. Vou tirar minha mão da sua boca e preciso que entre no carro e fique o mais calma possível porque a gente precisa sair daqui.
Faço que sim com a cabeça mais uma vez, ele tira a mão da minha boca e me empurra para dentro do carro. Ele corre até o lado do motorista, entra depressa, liga o carro e segue pela rua. Nós viramos a esquina bem no instante em que duas viaturas aparecem na esquina na outra extremidade da rua, atrás de nós. Vamos embora, e eu coloco a cabeça entre os joelhos, tentando respirar. Nem sequer penso no que acabou de acontecer. Não consigo. Não aconteceu. Não pode ter acontecido. Eu me concentro no fato de que isso tudo não passa de um pesadelo terrível e em respirar. Respiro para garantir que ainda estou viva, pois de forma alguma isso se parece com minha vida.

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Esse capítulo foi bem.. Tenso!
Desculpem não postar ontem, e pra não acontecer isso com a próxima fic - sim, essa ta acabando :( -, quando essa terminar eu só vou começar a postar a nova quando acabarem minhas provas, ok? Elas começam segunda, e vão até a quarta de fora a próxima, na outra semana ainda, mas nesse ritmo de estudo, eu não tenho tempo de editar, revisar e postar capítulos, então prefiro não começar e ter que deixar vocês esperando, quero começar quando eu tiver tempo pra postar bonitinho. Mas se acalmem, hoje é quarta, então daqui a duas semanas, nova fic
É isso, love vcs princesas, bjs

6 comentários:

  1. Por um breve momento eu achei q o joe iria levar um tiro!! Ainda bem q eu estava errada!! Coitada da Demi, ter q conviver com o odio e o amor pelo pai!! Pelo menos o Joe esta la pra ser o heroi q o pai dela nao foi. E coitada da Less!! Eu nao esperava essa! Agora o Joe vai ficar arrasado. Bom, ja falei demais. Quero mais capitulo ( nao deixe de postar hj. Estou de olho)
    Ps: falta quantos capitulos?

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  2. Por um momento eu achei que Joe, que levaria o tiro, cara que horrível o Joe, descobrir que a irmã sofreu isso, talvez o motivo da Less, ter se suicidado, isso é horrível.
    Eu fique realmente com pena da Demi, ele não podia ter feito isso, e ainda mais na frente dela
    Já está acabando? Que pena :(
    Eu não sei o que falar
    Posta assim que puder okay?
    Beijos e eu amo você :)

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  3. Ta perfeito , tá cada vez melhor !
    Adorei o capítulo e adorei o capítulo anterior também , quando eles fazem amor <3
    Posta mais
    Bjs

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  4. <33 eu to adorando cada vez mais !
    Posta logo por favor
    Bjs

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